Por Túlio Madson Galvão |
Começa na próxima quarta-feira (7) a sétima edição do FlipAut!, Festival Literário Alternativo de Pipa. O evento, sem fins lucrativos, conta com uma intensa e extensa programação que se estenderá até o sábado (10), que além das mesas temáticas contará com lançamentos de filmes e livros, além de exposições, apresentações musicais e teatrais, feira de livros, entre outros. Levando arte e cultura para a praça pública, na badalada noite de Pipa.
Pipa e Natal passam por processos parecidos; seus litorais, ornados de falésias e dunas, fazem-nas exaltar suas belezas naturais, tendo em vista a exploração do turismo, diluindo suas identidades culturais. Nesse sentido, a Pipa de Hélio Galvão, com seus pescadores, seu ar manso, vai diluindo-se em uma identidade “tour”, geralmente voltada ao binômio sol e praia; o mesmo vale para a pacata e folclórica Natal de Câmara Cascudo, que em seu provincianismo chegou a afirmar que não havia índios em nosso Estado. Mas há? Talvez tenha se questionado o caro leitor, que não deve sentir-se culpado, há toda uma historiografia que respalda a tese de uma aniquilação dos índios no RN após a Guerra dos Bárbaros, comum inclusive em alguns currículos escolares mais antigos, visão essa respaldada pelo próprio Cascudinho, entre outros autores. Tudo bem, mas o que a questão indígena e a formação de identidades culturais têm a ver com o Festival Literário, pergunta agora o leitor ainda perdido nesse longo e sinuoso parágrafo.
Acontece que na sexta (9), durante a FlipAut!, ocorrerá a mesa: “Os Mártires e o Rei do Sertão: resgate da identidade indígena no RN” às 20 horas, com Luiz Katu e Túlio Madson Galvão, em palco armado na Praça do Pescador. Cabe aqui uma ressalva necessária quanto ao uso da palavra “resgate”, já que a expressão reforça a tese de uma identidade indígena quase extinta, sob perigo, quando na verdade ela se faz presente em nossa vida privada, nossos hábitos alimentares, costumes, nomeiam nossos lugares. No geral somos indígenas, exceto aqueles que negam ser. A retomada, o resgate dessa identidade, se faz necessária, sobretudo, no espaço público, seja na concretude das praças, na semiótica das mídias, ou no discurso dos livros, a questão indígena é pouco presente, principalmente aquela que foge do lugar comum, da visão exótica, folclórica e estereotipada.
Apesar de o Estado possuir a menor população autodeclarada indígena no país, segundo o IBGE, o RN possui diversidades comunidades que preservam sua cultura tradicional e aos poucos vão deixando de ter vergonha em se definirem como índios, como os Mendonça na comunidade do Amarelão em João Câmara, os Caboclos e Banguê em Açu, os Potiguaras em Sagi e no Catu em Canguaretama, onde reside a primeira e única escola indígena do Estado, cujo cacique Luiz Katu, que como já dito dividirá a referida mesa, vem desempenhando um importante papel de levar esse debate para a esfera pública.
A escola passou a ser oficialmente indígena em 2008, sendo uma importante conquista para a afirmação da identidade daquela comunidade, os curumins, como chamam suas crianças, possuem educação em tempo integral, que além das disciplinas comuns a todos os estudantes do período, contam também com aulas de tupi antigo, etno-história e realizam atividades esportivas e danças como o toré.
Os filósofos alemães utilizavam a palavra “bildung” para se referir à formação cultural do indivíduo, cujos elementos básicos geralmente eram identificados como liberdade, autonomia e identidade, ambos negados historicamente na formação dos povos originários no Brasil. Por isso, as escolas localizadas em comunidades indígenas, se querem promover uma formação do indivíduo integrada ao meio no qual habitam, devem possibilitar a autonomia e a liberdade necessária para que a comunidade afirme sua identidade no processo de formação dos seus jovens.
História e Memória são as bases da Identidade, já que a Identidade é uma evocação no presente de uma lembrança passada; sendo assim, é crucial que esse processo de retomada da questão indígena no espaço público passe também por uma revisão historiográfica. Não se trata de um resgate nostálgico do que poderíamos ter sido em potência, mas sim, reavaliar a historiografia sob um novo ponto de vista. Já que a forma como lidamos com o passado molda o que somos no presente e nos projeta para o futuro. Como diria Nietzsche: “somente na medida em que a história serve à vida queremos servi-la”.
Um evento marcante em nossa memória é o imaginário criado em torno dos Mártires de Cunhaú e Uruaçu, principalmente agora com sua iminente canonização. Parte desse imaginário surge com a disseminação do panfleto de Lopo Curado Garro, que mescla o relato com elementos fantásticos como músicas angelicais que ascendem ao céu e manchas de sangue que não secam, mesmo após meses, ou o relato de Diogo Lopes Santiago que nos conta sobre braços subitamente atrofiados e indígenas devorando-se mutuamente vitimados repentinamente pela raiva e coisas do tipo.
Parte considerável das fontes primárias, que são escassas, atribui o ocorrido à maldade desmedida e diabólica dos indígenas e batavos, levando para o campo moral e religioso um conflito de origem muito mais complexa. A forma como os tapuias guerreavam foi intencionalmente associada, pelas autoridades locais, à forças demoníacas e falta de humanidade, assim procurava-se legitimar a guerra, já que rendia terra e escravos para o avanço da atividade pastoril. O relato de alguns cronistas era parte integrante desse empreendimento, inclusive os relatos de Lopo e Diogo.
Ora, quem são os mártires em um continente onde, segundo especialistas, 95% dos habitantes nativos foram dizimados nos dois primeiros séculos de invasão europeia. O mártir é aquele que tem fé, aquele que acredita. Morre pelo que acredita porque não poderia agir de outro modo, em todo o sertão da antiga Capitania do Rio Grande, lutaram e morreram os assim chamados “tapuias”, os não tupis, não domesticados, não aldeados, os de língua travada, inaptos a usar a língua geral, o nheengatu, tecida pelo jesuítas. Geralmente foram associados às forças demoníacas, selvagerias, retratados com aspectos monstruosos, mesmo pelos seus aliados holandeses.
Em nosso sertão eram em geral duas as etnias denominadas tapuias: os Cariris e os Tarairiús. De acordo com o relato, Jererera, filho do lendário Janduí, tido como rei dos tapuias Tarairiús, foi o primeiro a iniciar o ataque que vitimou dezenas na capela do antigo engenho Cunhaú, uma represália pelos recentes massacres portugueses contra índios aliados dos holandeses em Pernambuco. Janduí liderava o principal acampamento dos Tarairiús, cujo acampamento principal ficava na atual cidade de Açu, mas sua influência territorial se estendia dos atuais estados do Ceará até Pernambuco.
Sua área de influência pelo Sertão adentro se dava não apenas pelo caráter nômade de seu povo, mas porque desempenhava também um papel de liderança, sobretudo militar, entre as tribos sertanejas, conseguindo arregimentar em torno de si milhares de índios, que inicialmente obtiveram êxito em combater o avanço dos portugueses após a expulsão dos holandeses, utilizando-se de uma tática de guerrilha denominada na época de “Guerra Brasílica”, auxiliados também por táticas e equipamentos dados pelos seus aliados batavos, assim como os cavalos, os quais souberam utilizar com uma invejável destreza, como fazem ainda os vaqueiros. A tática consistia em diversos ataques isolados, sem uma confrontação direta, seguido de fugas rápidas e uma rotina sempre volante, uma estratégia semelhante às emboscadas utilizadas pelos cangaceiros posteriormente, seguindo seus rastros.
Os Janduís foram dizimados, escravizados e aldeados pelo terço paulista do temido bandeirante Domingos Jorge Velho, que interrompeu a campanha no Quilombo dos Palmares para combatê-los, em um momento do conflito onde eles já haviam dominado quase toda a Capitania e os poucos colonos que restaram fugiam desesperados mesmo sob a pena de perder todos os seus bens.
Essas e outras histórias, discursos e vivências estarão presentes na mesa, no palco, na Praça, em Pipa, próxima sexta, 9 de dezembro às 20h no FlipAut!, não perca.
Pipa e Natal passam por processos parecidos; seus litorais, ornados de falésias e dunas, fazem-nas exaltar suas belezas naturais, tendo em vista a exploração do turismo, diluindo suas identidades culturais. Nesse sentido, a Pipa de Hélio Galvão, com seus pescadores, seu ar manso, vai diluindo-se em uma identidade “tour”, geralmente voltada ao binômio sol e praia; o mesmo vale para a pacata e folclórica Natal de Câmara Cascudo, que em seu provincianismo chegou a afirmar que não havia índios em nosso Estado. Mas há? Talvez tenha se questionado o caro leitor, que não deve sentir-se culpado, há toda uma historiografia que respalda a tese de uma aniquilação dos índios no RN após a Guerra dos Bárbaros, comum inclusive em alguns currículos escolares mais antigos, visão essa respaldada pelo próprio Cascudinho, entre outros autores. Tudo bem, mas o que a questão indígena e a formação de identidades culturais têm a ver com o Festival Literário, pergunta agora o leitor ainda perdido nesse longo e sinuoso parágrafo.
Acontece que na sexta (9), durante a FlipAut!, ocorrerá a mesa: “Os Mártires e o Rei do Sertão: resgate da identidade indígena no RN” às 20 horas, com Luiz Katu e Túlio Madson Galvão, em palco armado na Praça do Pescador. Cabe aqui uma ressalva necessária quanto ao uso da palavra “resgate”, já que a expressão reforça a tese de uma identidade indígena quase extinta, sob perigo, quando na verdade ela se faz presente em nossa vida privada, nossos hábitos alimentares, costumes, nomeiam nossos lugares. No geral somos indígenas, exceto aqueles que negam ser. A retomada, o resgate dessa identidade, se faz necessária, sobretudo, no espaço público, seja na concretude das praças, na semiótica das mídias, ou no discurso dos livros, a questão indígena é pouco presente, principalmente aquela que foge do lugar comum, da visão exótica, folclórica e estereotipada.
Apesar de o Estado possuir a menor população autodeclarada indígena no país, segundo o IBGE, o RN possui diversidades comunidades que preservam sua cultura tradicional e aos poucos vão deixando de ter vergonha em se definirem como índios, como os Mendonça na comunidade do Amarelão em João Câmara, os Caboclos e Banguê em Açu, os Potiguaras em Sagi e no Catu em Canguaretama, onde reside a primeira e única escola indígena do Estado, cujo cacique Luiz Katu, que como já dito dividirá a referida mesa, vem desempenhando um importante papel de levar esse debate para a esfera pública.
A escola passou a ser oficialmente indígena em 2008, sendo uma importante conquista para a afirmação da identidade daquela comunidade, os curumins, como chamam suas crianças, possuem educação em tempo integral, que além das disciplinas comuns a todos os estudantes do período, contam também com aulas de tupi antigo, etno-história e realizam atividades esportivas e danças como o toré.
Os filósofos alemães utilizavam a palavra “bildung” para se referir à formação cultural do indivíduo, cujos elementos básicos geralmente eram identificados como liberdade, autonomia e identidade, ambos negados historicamente na formação dos povos originários no Brasil. Por isso, as escolas localizadas em comunidades indígenas, se querem promover uma formação do indivíduo integrada ao meio no qual habitam, devem possibilitar a autonomia e a liberdade necessária para que a comunidade afirme sua identidade no processo de formação dos seus jovens.
História e Memória são as bases da Identidade, já que a Identidade é uma evocação no presente de uma lembrança passada; sendo assim, é crucial que esse processo de retomada da questão indígena no espaço público passe também por uma revisão historiográfica. Não se trata de um resgate nostálgico do que poderíamos ter sido em potência, mas sim, reavaliar a historiografia sob um novo ponto de vista. Já que a forma como lidamos com o passado molda o que somos no presente e nos projeta para o futuro. Como diria Nietzsche: “somente na medida em que a história serve à vida queremos servi-la”.
Um evento marcante em nossa memória é o imaginário criado em torno dos Mártires de Cunhaú e Uruaçu, principalmente agora com sua iminente canonização. Parte desse imaginário surge com a disseminação do panfleto de Lopo Curado Garro, que mescla o relato com elementos fantásticos como músicas angelicais que ascendem ao céu e manchas de sangue que não secam, mesmo após meses, ou o relato de Diogo Lopes Santiago que nos conta sobre braços subitamente atrofiados e indígenas devorando-se mutuamente vitimados repentinamente pela raiva e coisas do tipo.
Parte considerável das fontes primárias, que são escassas, atribui o ocorrido à maldade desmedida e diabólica dos indígenas e batavos, levando para o campo moral e religioso um conflito de origem muito mais complexa. A forma como os tapuias guerreavam foi intencionalmente associada, pelas autoridades locais, à forças demoníacas e falta de humanidade, assim procurava-se legitimar a guerra, já que rendia terra e escravos para o avanço da atividade pastoril. O relato de alguns cronistas era parte integrante desse empreendimento, inclusive os relatos de Lopo e Diogo.
Ora, quem são os mártires em um continente onde, segundo especialistas, 95% dos habitantes nativos foram dizimados nos dois primeiros séculos de invasão europeia. O mártir é aquele que tem fé, aquele que acredita. Morre pelo que acredita porque não poderia agir de outro modo, em todo o sertão da antiga Capitania do Rio Grande, lutaram e morreram os assim chamados “tapuias”, os não tupis, não domesticados, não aldeados, os de língua travada, inaptos a usar a língua geral, o nheengatu, tecida pelo jesuítas. Geralmente foram associados às forças demoníacas, selvagerias, retratados com aspectos monstruosos, mesmo pelos seus aliados holandeses.
Em nosso sertão eram em geral duas as etnias denominadas tapuias: os Cariris e os Tarairiús. De acordo com o relato, Jererera, filho do lendário Janduí, tido como rei dos tapuias Tarairiús, foi o primeiro a iniciar o ataque que vitimou dezenas na capela do antigo engenho Cunhaú, uma represália pelos recentes massacres portugueses contra índios aliados dos holandeses em Pernambuco. Janduí liderava o principal acampamento dos Tarairiús, cujo acampamento principal ficava na atual cidade de Açu, mas sua influência territorial se estendia dos atuais estados do Ceará até Pernambuco.
Sua área de influência pelo Sertão adentro se dava não apenas pelo caráter nômade de seu povo, mas porque desempenhava também um papel de liderança, sobretudo militar, entre as tribos sertanejas, conseguindo arregimentar em torno de si milhares de índios, que inicialmente obtiveram êxito em combater o avanço dos portugueses após a expulsão dos holandeses, utilizando-se de uma tática de guerrilha denominada na época de “Guerra Brasílica”, auxiliados também por táticas e equipamentos dados pelos seus aliados batavos, assim como os cavalos, os quais souberam utilizar com uma invejável destreza, como fazem ainda os vaqueiros. A tática consistia em diversos ataques isolados, sem uma confrontação direta, seguido de fugas rápidas e uma rotina sempre volante, uma estratégia semelhante às emboscadas utilizadas pelos cangaceiros posteriormente, seguindo seus rastros.
Os Janduís foram dizimados, escravizados e aldeados pelo terço paulista do temido bandeirante Domingos Jorge Velho, que interrompeu a campanha no Quilombo dos Palmares para combatê-los, em um momento do conflito onde eles já haviam dominado quase toda a Capitania e os poucos colonos que restaram fugiam desesperados mesmo sob a pena de perder todos os seus bens.
Essas e outras histórias, discursos e vivências estarão presentes na mesa, no palco, na Praça, em Pipa, próxima sexta, 9 de dezembro às 20h no FlipAut!, não perca.
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