No Dia da Consciência Negra, reflexão contextual. O Brasil conseguiu estender tanto o regime escravocrata, que foi o último país do mundo a abolir a escravidão. Não há país construído mais racionalmente por uma classe dominante do que o nosso. Nem há sociedade que corresponda tão precisamente aos interesses de sua classe dominante como o Brasil. Como demonstração de agudeza
se¬nhorial, libertaram os donos da onerosa obrigação de alimentar os filhos dos escravos que seriam livres. Festejaram este feito com a Lei do Ventre Livre. Depois, libertaram os mesmos donos do encargo inútil de sustentar os negros velhos que sobrevive¬ram ao desgaste no trabalho, comemorando também este feito como uma conquista libertária. Como se vê, estamos diante de uma classe dirigente armada de uma sabedoria atroz.
Na matriz étnica potiguar a presença negra é de pouca expressividade numérica. A economia canavieira não era um produto de sustentação econômica que exigisse tal mão-de-obra. As duas maiores bacias hidrográficas potiguares deságuam em pleno atlântico semi-árido. Engenho pungente só no litoral oriental de vales tropicais úmidos. Mossoró, contagiada pelas idéias abolicionistas oriundas do Ceará, liberta no 30 de setembro seus escravos, cinco anos antes. As elites locais não precisavam utilizar escravos, uma vez que a economia se baseava no comércio e não na lavoura monocultora de exportação. Em verdade, a tal Lei Áurea aqui não teve serventia.
O RN foi epicentro do movimento nativista mais emblemático do século XVII. Levantes indígenas contra a penetração portuguesa para o interior: “Confederação dos Cariris”, “Levante do Gentio Tapuya” ou “Guerra dos Bárbaros” – ou seria a “Guerra dos Civilizados”?. Movidos na ganância por terra e mão-de-obra escrava (proibida desde 1537 pela Bula Veritas IPSA), os colonizadores deflagraram o subterfúgio da “guerra justa”, instigando os índios para o combate inglório. O colonizador utilizou-se inclusive das bandeiras (Terço dos Paulistas). O sanguinolento e lendário Domingos Jorge Velho teve nessas paragens por quase duas décadas. Missão: desbravamento do sertão para a efetivação da colonização do interior, e concomitante, o abominável processo de extinção, genocídio impiedoso dos nossos silvícolas, tanto tupis/potiguares como cariris/tapyuas. Domingos Velho só saiu da capitania imbuído em derrocar o quilombo de Palmares do Zumbi. Levou os índios mais destemidos, e claro, cooptados. Entre eles, Sorobabé, que já havia em 1604 salvado a Bahia, assediada pelos aimorés .
Os negros, lutando pela liberdade e pela terra, se mostravam invencíveis, colocavam temor nos soldados. Quando nosso silvícola abriu caminho, detonando os quengos quilombolas e dando moral aos bandeirantes, que destronaram o sonho de Zumbi. Sorobabé, agraciado com o produto dos pretos dos Palmares que lhe coube, comprou tambor, bandeira de campo, cavalo ajaezado, ricos vestuários, e só depois prosseguiu, fazendo-se preceder de um índio brandindo espada. Entrou triunfante na cidadela - adormecida no passado. População em continência, menos os religiosos. Nosso herói macunaímico parou, e proclamou em tom ameaçador:
- Vou retornar à PB, quando lá chegar, volto, e quero todos aqui, inclusive, os padrecos.
Sorobabé encarou os irmãos da capoeira e da umbanda, e a onipresente santíssima e apostólica igreja católica. Dizem as más línguas que terminou seus dias na penúria, na decadência e no vício do álcool. Êita Sorobebum invocado.
[ Plínio Sanderson Saldanha ]
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